Segunda leitura
Dos Sermões de São Gregório de Nazianzo, bispo
(Oratio 14, De pauperum amore,
38.40:PG 35,907.910)
(Séc.VI)
Sirvamos a Cristo na pessoa dos pobres
Diz a Escritura: Bem-aventurados os misericordiosos, porque
alcançarão misericórdia (Mt 5,7). A misericórdia não é certamente a
última das bem-aventuranças. Lemos também: Feliz de quem pensa no
pobre e no fraco (Sl 40,2). E ainda: Feliz o homem caridoso e
prestativo (Sl 111,5). E noutro lugar: O justo é generoso e dá
esmola (Sl 36,26). Tornemo-nos dignos destas bênçãos, de sermos
chamados misericordiosos e cheios de bondade. Nem sequer a noite
interrompa a tua prática da misericórdia. Não digas: “Vai e depois
volta, amanhã te darei o que pedes”.Nada se deve interpor entre a tua
resolução e o bem que vais fazer. Só a prática do bem não admite
adiamento.
Reparte o teu pão com o faminto, acolhe em tua casa os
pobres e peregrinos (Is 58,7), com alegria e presteza. Quem se
dedica a obras de misericórdia, diz o Apóstolo, faça-o com
alegria (Rm 12,8). Essa presteza e solicitude duplicarão a
recompensa da tua dádiva. Mas o que é dado com tristeza e de má vontade
não se torna agradável nem é digno. Devemos alegrar-nos, e não
entristecer-nos, quando prestamos algum benefício. Diz a Escritura: Se
quebrares
as cadeias injustas e desligares as amarras do jugo (Is
58,6), isto é, da avareza e das discriminações, das suspeitas e das
murmurações, que acontecerá? A tua recompensa será grande e admirável! Então,
brilhará
tua luz como a aurora e tua saúde há de recuperar-se mais
depressa (Is 58,8). E quem há que não deseje a luz e a saúde?
Por isso, se me julgais digno de alguma atenção, vós,
servidores de Cristo, seus irmãos e co-herdeiros, em todas as ocasiões
visitemos a Cristo, alimentemos a Cristo, tratemos as feridas de
Cristo, vistamos a Cristo, acolhamos a Cristo, honremos a Cristo; não
apenas oferecendo-lhe uma refeição, como fizeram alguns, não apenas
ungindo-o com perfumes como Maria, não apenas dando-lhe o sepulcro como
José de Arimatéia, não apenas dando o necessário para o sepultamento
como Nicodemos que dava a Cristo só uma parte do seu amor, nem,
finalmente, oferecendo ouro, incenso e mirra, como fizeram os magos,
antes de todos esses. O Senhor do universo quer a misericórdia e não o
sacrifício, e a compaixão tem muito maior valor que milhares de
cordeiros gordos. Ofereçamos a misericórdia e a compaixão na pessoa dos
pobres que hoje na terra são humilhados, de modo que, ao deixarmos este
mundo, eles nos recebam nas moradas eternas, juntamente com o próprio
Cristo nosso Senhor, a quem seja dada a glória pelos séculos dos
séculos. Amém.
Segunda leitura
Dos Comentários sobre o livro de Jó, de São Gregório Magno, papa
(Lib. 13,21-23: PL75,1028-1029)
(Séc.VI)
O mistério da nossa vida nova
O bem-aventurado Jó, como figura da santa Igreja, ora fala em
nome do corpo, ora em nome da cabeça. Mas, às vezes, ocorre que, quando
fala dos membros, toma subitamente as palavras da cabeça. Eis por que
diz: Sofri tudo isso, embora não haja violência em minhas mãos e
minha oração seja pura(Jó 16,17). Sem haver violência alguma em
suas mãos, teve também que sofrer aquele que não cometeu pecado e em
cuja boca não se encontrou falsidade; no entanto, pela nossa salvação,
suportou o tormento da cruz. Foi ele o único que elevou a Deus uma
oração pura, pois mesmo em meio aos sofrimentos da paixão orou por seus
perseguidores, dizendo: Pai, perdoa-lhes! Eles não sabem o que
fazem! (Lc 23,34).
Quem poderá dizer ou pensar uma oração mais pura do que esta em
que se pede misericórdia por aqueles mesmos que infligem a dor? Por
isso, o sangue de nosso Redentor, derramado pela crueldade dos
perseguidores,se transformou depois em bebida de salvação para os que
nele acreditariam e o proclamariam Filho de Deus. Acerca deste sangue,
continua com razão o texto sagrado: Ó terra, não cubras o meu
sangue, nem sufoques o meu clamor (Jó 16,18). E ao homem pecador
foi dito: És pó e ao pó hás de voltar (Gn 3,19). A terra, de
fato, não ocultou o sangue de nosso Redentor, pois qualquer pecador, ao
beber o preço de sua redenção, o proclama e louva e, como pode, o
manifesta aos outros.
A terra não cobriu também o seu sangue porque a santa Igreja já
anunciou em todas as partes do mundo o mistério de sua redenção.
Notemos no que se diz a seguir: Nem sufoques meu clamor. O próprio
sangue da redenção, por nós bebido, é o clamor de nosso Redentor. Por
isso diz também Paulo: Vós vos aproximastes da aspersão do sangue
mais eloqüente que o de Abel (Hb 12,24). E do sangue de Abel fora
dito: A voz do sangue de teu irmão está clamando da terra por mim
(Gn 4,10). O sangue de Jesus é mais eloqüente que o de Abel, porque o
sangue de Abel pedia a morte do irmão fratricida, ao passo que o sangue
do Senhor obteve a vida para seus perseguidores.
Assim, para que não nos seja inútil o sacramento da paixão do
Senhor, devemos imitar aquilo que recebemos e anunciar aos outros o que
veneramos. O clamor de Cristo fica sufocado em nós, se a língua não
proclama aquilo em que o coração acredita. Para que esse clamor não
seja sufocado em nós, é preciso que, na medida de suas possibilidades,
cada um manifeste aos outros o mistério de sua vida nova.
Segunda leitura
Do Tratado sobre a oração, de Tertuliano, presbítero
(Cap.28-29: CCL 1,273-274)
(Séc. III)
O sacrifício espiritual
A oração é o sacrifício espiritual que aboliu os antigos
sacrifícios. Que me importa a abundância de vossos sacrifícios? –
diz o Senhor. Estou farto de holocaustos de carneiros e de gordura de
animais cevados; do sangue de touros, de cordeiros e de bodes, não me
agrado. Quem vos pediu estas coisas? (Is 1,11). O Evangelho nos
ensina o que pede o Senhor: Está chegando a hora, diz ele,em que os
verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade. Deus é
espírito (Jo 4,23.24), e por isso procura tais adoradores. Nós
somos verdadeiros adoradores e verdadeiros sacerdotes, quando, orando
em espírito, oferecemos o sacrifício espiritual da oração, como
oferenda digna e agradável a Deus, aquela que ele mesmo pediu e
preparou.
Esta oferenda, apresentada de coração sincero, alimentada pela
fé, preparada pela verdade, íntegra e inocente, casta e sem mancha,
coroada pelo amor, é a que devemos levar ao altar de Deus, acompanhada
pelo solene cortejo das boas obras, entre salmos e hinos; ela nos
alcançará de Deus tudo o que pedimos. Que poderia Deus negar à oração
que procede do espírito e da verdade, se foi ele mesmo que assim
exigiu? Todos nós lemos, ouvimos e acreditamos como são grandes os
testemunhos da sua eficácia!
Nos tempos passados, a oração livrava do fogo, das feras e da
fome; e no entanto ainda não havia recebido de Cristo toda a sua
eficácia. Quanto maior não será, portanto, a eficácia da oração cristã!
Talvez não faça descer sobre as chamas o orvalho do Anjo, não feche a
boca dos leões, não leve a refeição aos camponeses famintos, não impeça
milagrosamente o sofrimento; mas vem em auxílio dos que suportam a dor
com paciência, aumenta a graça aos que sofrem com fortaleza, para que
vejam com os olhos da fé a recompensa do Senhor, reservada aos que
sofrem pelo nome de Deus. Outrora a oração fazia vir as pragas,
derrotava os exércitos inimigos, impedia a chuva necessária. Agora,
porém, a oração autêntica afasta a ira de Deus, vela pelo bem dos
inimigos e roga pelos perseguidores. Será para admirar que faça cair do
céu as águas, se conseguiu que de lá descessem as línguas de fogo? Só a
oração vence a Deus. Mas Cristo não quis que ela servisse para fazer
mal algum; quis antes que toda a eficácia que lhe deu fosse apenas para
servir o bem.
Conseqüentemente, ela não tem outra finalidade senão tirar do
caminho da morte as almas dos defuntos, robustecer os fracos, curar os
enfermos, libertar os possessos, abrir as portas das prisões, romper os
grilhões dos inocentes. Ela perdoa os pecados, afasta as tentações, faz
cessar as perseguições, reconforta os de ânimo abatido, enche de
alegria os generosos, conduz os peregrinos, acalma as tempestades,
detém os ladrões, dá alimento aos pobres, ensina os ricos, levanta os
que caíram, sustenta os que vacilam, confirma os que estão de pé.
Oram todos os anjos, ora toda criatura. Oram à sua maneira os
animais domésticos e as feras, que dobram os joelhos. Saindo de seus
estábulos ou de suas tocas, levantam os olhos para o céu e não abrem a
boca em vão, fazendo vibrar o ar com seus gritos. Mesmo as aves quando
levantam vôo, elevam-se para o céu e, em lugar de mãos, estendem as
asas em forma de cruz, dizendo algo semelhante a uma prece. Que dizer
ainda a respeito da oração? O próprio Senhor também orou; a ele honra e
poder pelos séculos dos séculos.
Segunda leitura
Do Livro A Autólico, de São Teófilo de Antioquia, bispo
(Lib. 1,2.7:PG6,1026-1027.1035)
(Séc.II)
Bem-aventurados os puros de
coração, porque verão a Deus
Se me disserem: “Mostra-me o teu Deus”, dir-te-ei: “Mostra-me o
homem que és e eu te mostrarei o meu Deus”. Mostra, portanto, como vêem
os olhos de tua mente e como ouvem os ouvidos de teu coração. Os que
vêem com os olhos do corpo, percebem o que se passa nesta vida terrena,
e observam as diferenças entre a luz e as trevas, o branco e o preto, o
feio e o belo, o disforme e o formoso, o que tem proporções e o que é
sem medida, o que tem partes a mais e o que é incompleto; o mesmo se
pode dizer no que se refere ao sentido do ouvido: sons agudos, graves
ou harmoniosos. Assim também acontece com os ouvidos do coração e com
os olhos da alma, no que diz respeito à visão de Deus.
Na verdade, Deus é visível para aqueles que são capazes de
vê-lo, porque mantêm abertos os olhos da alma. Todos têm olhos, mas
alguns os têm obscurecidos e não vêem a luz do sol. E se os cegos não
vêem, não é porque a luz do sol deixou de brilhar; a si mesmos e a seus
olhos é que devem atribuir a falta de visão. É o que ocorre contigo:
tens os olhos da alma velados pelos teus pecados e tuas más ações.
O homem deve ter a alma pura, qual um espelho reluzente. Quando
o espelho está embaçado, o homem não pode ver nele o seu rosto; assim
também, quando há pecado no homem, não lhe é possível ver a Deus. Mas,
se quiseres, podes ficar curado. Confia-te ao médico e ele abrirá os
olhos de tua alma e de teu coração. Quem é este médico? É Deus, que
pelo seu Verbo e Sabedoria dá vida e saúde a todas as coisas. Foi por
seu Verbo e Sabedoria que Deus criou o universo: A Palavra do
Senhor criou os céus, e o sopro de seus lábios, as estrelas (Sl
32,6). Sua Sabedoria é infinita. Com a sua Sabedoria, Deus fundou a
terra; com a sua inteligência consolidou os céus; com sua ciência foram
cavados os abismos e as nuvens derramaram o orvalho.
Se compreenderes tudo isto, ó homem, se a tua vida for santa,
pura e justa, poderás ver a Deus. Se deres preferência em teu coração à
fé e ao temor de Deus, então compreenderás. Quando te libertares da
condição mortal e te revestires da imortalidade, então serás digno de
ver a Deus. Sim, Deus ressuscitará o teu corpo, tornando-o imortal como
a tua alma; e então, feito imortal, tu verás o que é Imortal, se agora
acreditares nele.
Segunda leitura
Dos Sermões de São Pedro Crisólogo, bispo
(Sermo 43: PL 52,320.322)
(Séc.IV)
O que a oração pede, o jejum o alcançae a misericórdia o
recebe
Há três coisas, meus irmãos, três coisas que mantêm a fé, dão
firmeza à devoção e perseverança à virtude. São elas a oração, o jejum
e a misericórdia. O que a oração pede, o jejum alcança e a misericórdia
recebe. Oração, misericórdia, jejum: três coisas que são uma só e se
vivificam reciprocamente. O jejum é a alma da oração e a misericórdia
dá vida ao jejum. Ninguém queira separar estas três coisas, pois são
inseparáveis. Quem pratica somente uma delas ou não pratica todas
simultaneamente, é como se nada fizesse. Por conseguinte, quem ora
também jejue; e quem jejua, pratique a misericórdia. Quem deseja ser
atendido nas suas orações, atenda as súplicas de quem lhe pede; pois
aquele que não fecha seus ouvidos às súplicas alheias, abre os ouvidos
de Deus às suas próprias súplicas.
Quem jejua, pense no sentido do jejum; seja sensível à fome dos
outros quem deseja que Deus seja sensível à sua; seja misericordioso
quem espera alcançar misericórdia; quem pede compaixão, também se
compadeça; quem quer ser ajudado, ajude os outros. Muito mal suplica
quem nega aos outros aquilo que pede para si.
Homem, sê para ti mesmo a medida da misericórdia;deste modo
alcançarás misericórdia como quiseres, quanto quiseres e com a rapidez
que quiseres; basta que te compadeças dos outros com generosidade e
presteza. Peçamos, portanto, destas três virtudes – oração,jejum,
misericórdia – uma única força mediadora junto de Deus em nosso favor;
sejam para nós uma única defesa, uma única oração sob três formas
distintas.
Reconquistemos pelo jejum o que perdemos por não saber
apreciá-lo; imolemos nossas almas pelo jejum, pois nada melhor podemos
oferecer a Deus como ensina o Profeta: Sacrifício agradável a Deus é um
espírito penitente; Deus não despreza um coração arrependido e
humilhado (cf. Sl 50,19). Homem, oferece a Deus a tua alma, oferece a
oblação do jejum, para que seja uma oferenda pura, um sacrifício santo,
uma vítima viva que ao mesmo tempo permanece em ti e é oferecida a
Deus. Quem não dá isto a Deus não tem desculpa, porque todos podem se
oferecer a si mesmos.
Mas, para que esta oferta seja aceita por Deus, a misericórdia
deve acompanhá-la; o jejum só dá frutos se for regado pela
misericórdia, pois a aridez da misericórdia faz secar o jejum. O que a
chuva é para a terra, é a misericórdia para o jejum. Por mais que
cultive o coração, purifique o corpo, extirpe os maus costumes e semeie
as virtudes, o que jejua não colherá frutos se não abrir as torrentes
da misericórdia. Tu que jejuas, não esqueças que fica em jejum o teu
campo se jejua a tua misericórdia; pelo contrário, a liberalidade da
tua misericórdia encherá de bens os teus celeiros. Portanto, ó homem,
para que não venhas a perder por ter guardado para ti, distribui aos
outros para que venhas a recolher; dá a ti mesmo, dando aos pobres,
porque o que deixares de dar aos outros, também tu não o possuirás.
Segunda leitura
Das Homilias de São Basílio Magno, bispo
(Hom. 20, De humilitate, 3:
PG31,530-531)
(Séc. IV)
Quem se gloria, glorie-se no Senhor
Não se glorie o sábio de seu saber, não se glorie o forte de
sua força, nem o rico de suas riquezas (Jr 9,22). Qual é então o
verdadeiro motivo de glória e em que consiste a grandeza do homem?
Quem se gloria – diz a Escritura – glorie-se nisto: em
conhecer e compreender que eu sou do Senhor (Jr 9,23). A nobreza do
homem, a sua glória e a sua dignidade consistem em saber onde está a
verdadeira grandeza, aderir a ela e buscar a glória que procede do
Senhor da glória. Diz efetivamente o Apóstolo: Quem se gloria,
glorie-se no Senhor. Estas palavras encontram-se na seguinte
passagem: Cristo se tornou para nós, da parte de Deus, sabedoria,
justiça, santificação e libertação, para que, como está escrito, “quem
se gloria, glorie-se no Senhor” (1Cor 1,31). Por conseguinte, é
perfeito e legítimo nos gloriarmos no Senhor quando, longe de
orgulhar-nos de nossa própria justiça, reconhecemos que estamos
realmente destituídos dela e só pela fé em Cristo somos justificados.
É nisto que Paulo se gloria: desprezando sua própria justiça,
busca apenas a que vem por meio de Cristo, ou seja, a que se obtém pela
fé e procede de Deus; para assim conhecer a Cristo, o poder de sua
ressurreição e a participação em seus sofrimentos, configurando-se à
sua morte, na esperança de alcançar a ressurreição dos mortos. Aqui
desaparece todo e qualquer orgulho. Nada te resta para que te possas
gloriar, ó homem, pois tua única glória e esperança está em fazeres
morrer tudo que é teu e procurares a vida futura em Cristo. E como
possuímos as primícias desta vida, já a iniciamos desde agora, uma vez
que vivemos inteiramente na graça e no dom de Deus.
É certamente Deus quem realiza em nós tanto o querer como o
fazer, conforme o seu desígnio benevolente (Fl 2,13). E é ainda
Deus que pelo seu Espírito nos revela a sabedoria que, de antemão,
destinou para nossa glória. Deus nos concede força e resistência em
nossos trabalhos. Tenho trabalhado mais do que os outros – diz
também Paulo – não propriamente eu, mas a graça de Deus comigo
(1Cor 15,10). Deus nos livra dos perigos para além de toda esperança
humana. Experimentamos, em nós mesmos, – diz ainda o Apóstolo –
a angústia de estarmos condenados à morte. Assim, aprendemos a não
confiar em nós mesmos, mas a confiar somente em Deus que ressuscita os
mortos. Ele nos livrou, e continuará a livrar-nos, de um tão grande
perigo de morte. Nele temos firme esperança de que nos livrará ainda,
em outras ocasiões (2Cor 1,9-10).
Segunda leitura
Dos Tratados sobre o Evangelho de São João, de Santo Agostinho,
bispo
(Tract.15,10-12.16-17:CCL
36,154-156)
(Séc.V)
Veio uma mulher da Samaria para tirar água
Veio uma mulher. Esta mulher é figura da Igreja, ainda não
justificada, mas já a caminho da justificação. É disso que iremos
tratar. A mulher veio sem saber o que ali a esperava; encontrou Jesus,
e Jesus dirigiu-lhe a palavra. Vejamos o fato e a razão por que veio
uma mulher da Samaria para tirar água (Jo 4,7). Os samaritanos não
pertenciam ao povo judeu; não eram do povo escolhido. Faz parte do
simbolismo da narração que esta mulher, figura da Igreja, tenha vindo
de um povo estrangeiro; porque a Igreja viria dos pagãos, dos que não
pertenciam à raça judaica.
Ouçamos, portanto, a nós mesmos nas palavras desta mulher,
reconheçamo-nos nela e nela demos graças a Deus por nós. Ela era uma
figura, não a realidade; começou por ser figura, e tornou-se realidade.
Pois acreditou naquele que queria torná-la uma figura de nós mesmos.
Veio para tirar água. Viera simplesmente para tirar água, como costumam
fazer os homens e as mulheres.
Jesus lhe disse: “Dá-me de beber”. Os discípulos tinham ido
à cidade para comprar alimentos. A mulher samaritana disse então a
Jesus: “Como é que tu, sendo judeu, pedes de beber a mim, que sou uma
mulher samaritana?” De fato os judeus não se dão com os samaritanos
(Jo 4,7-9). Estais vendo que são estrangeiros. Os judeus de modo algum
se serviam dos cântaros dos samaritanos. Como a mulher trazia consigo
um cântaro para tirar água, admirou-se que um judeu lhe pedisse de
beber, pois os judeus não costumavam fazer isso. Mas aquele que pedia
de beber tinha sede da fé daquela mulher.
Escuta agora quem pede de beber. Respondeu-lhe Jesus? “Se tu
conhecesses o dom de Deus e quem é que te pede: ‘Dá-me de beber’, tu
mesma lhe pedirias a ele, e ele te daria água viva (Jo 4,10). Pede
de beber e promete dar de beber. Apresenta-se como necessitado que
espera receber, mas possui em abundância para saciar os outros. Se tu
conhecesses o dom de Deus, diz ele. O dom de Deus é o Espírito Santo.
Jesus fala ainda veladamente à mulher, mas pouco a pouco entra em seu
coração, e vai lhe ensinando. Que haverá de mais suave e bondoso que
esta exortação? Se tu conhecesses o dom de Deus e quem é que te pede:
‘Dá-me de beber’,tu mesma lhe pedirias a ele, e ele te daria água viva.
Que água lhe daria ele, senão aquela da qual está escrito: Em
vós
está a fonte da vida? (Sl 35,10). Pois como podem ter sede
os que vêm saciar-se na abundância de vossa morada? (Sl 35,9). O
Senhor prometia à mulher um alimento forte, prometia saciá-la com o
Espírito Santo. Mas ela ainda não compreendia. E, na sua incompreensão,
que respondeu? Disse-lhe então a mulher: “Senhor, dá-me dessa água,
para que eu não tenha mais sede e nem tenha de vir aqui para tirá-la”
(Jo 4,15). A necessidade a obrigava a trabalhar, mas sua fraqueza
recusava o trabalho. Se ao menos ela tivesse ouvido aquelas palavras: Vinde
a
mim todos vós que estais cansados e fatigados sob o peso dos vossos
fardos e eu vos darei descanso! (Mt 11,28). Jesus dizia-lhe tudo
aquilo para que não se cansasse mais; ela, porém, ainda não
compreendia.