sábado, 7 de março de 2020

Sábado da 1ª semana da Quaresma


Segunda leitura 
 

Da Constituição pastoral Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo de hoje, do Concílio Vaticano II 
 
(N.9-10) 
 
(Séc.XX) 
 

As interrogações mais profundas do gênero humano 
 
O mundo moderno apresenta-se simultaneamente poderoso e fraco, capaz do melhor e do pior; abre-se diante dele o caminho da liberdade ou da escravidão, do progresso ou da regressão, da fraternidade e do ódio. Por outro lado, o homem toma consciência de que depende dele a boa orientação das forças por ele despertadas e que podem oprimi-lo ou servi-lo. Eis por que se interroga a si mesmo. Na verdade, os desequilíbrios que atormentam o mundo moderno estão ligados a um desequilíbrio mais profundo, que se enraíza no coração do homem. No íntimo do próprio homem, muitos elementos lutam entre si. De um lado, ele experimenta, como criatura, suas múltiplas limitações; por outro, sente-se ilimitado em seus desejos e chamado a uma vida superior.
Atraído por muitas solicitações, é continuamente obrigado a escolher e a renunciar. Mais ainda: fraco e pecador, faz muitas vezes o que não quer e não faz o que desejaria. Em suma, é em si mesmo que o homem sofre a divisão que dá origem a tantas e tão grandes discórdias na sociedade. Muitos, sem dúvida, que levam uma vida impregnada de materialismo prático, não podem ter uma clara percepção desta situação dramática; ou, oprimidos pela miséria, sentem-se incapazes de prestar-lhe atenção. Outros, em grande número, julgam encontrar satisfação nas diversas interpretações da realidade que lhes são propostas. Alguns, porém, esperam unicamente do esforço humano a verdadeira e plena libertação da humanidade, e estão persuadidos de que o futuro domínio do homem sobre a terra dará satisfação a todos os desejos de seu coração.
Não faltam também os que, desesperando de encontrar o sentido da vida, louvam a audácia daqueles que, julgando a existência humana vazia de qualquer significado próprio, se esforçam por encontrar todo o seu valor apoiando-se apenas no próprio esforço. Contudo, diante da atual evolução do mundo, cresce o número daqueles que formulam as questões mais fundamentais ou as percebem com nova acuidade. Que é o homem? Qual é o sentido do sofrimento, do mal e da morte que, apesar de tão grandes progressos, continuam a existir? Para que servem semelhantes vitórias,   conseguidas a tanto custo? Que pode o homem dar à sociedade e dela esperar? Que haverá depois desta vida terrestre? A Igreja, porém, acredita que Jesus Cristo, morto e ressuscitado por todo o gênero humano, oferece ao homem, pelo Espírito Santo, luz e forças que lhe permitirão corresponder à sua vocação suprema; ela crê que não há debaixo do céu outro nome dado aos homens pelo qual possam ser salvos. Crê igualmente que a chave, o centro e o fim de toda a história humana encontra-se em seu Senhor e Mestre. A Igreja afirma, além disso, que, subjacente a todas as transformações, permanecem imutáveis muitas coisas que têm seu fundamento último em Cristo, o mesmo ontem, hoje e sempre.

sexta-feira, 6 de março de 2020

Sexta-feira da 1ª semana da Quaresma


Segunda leitura 
 
Do “Espelho da Caridade”, do Bem-aventurado Elredo, abade 
 
(Lib. 3,5: PL 195,582) 
 
(Séc.XI) 
 
O amor fraterno a exemplo de Cristo 
 
Nada nos impele tanto ao amor dos inimigos – e é nisso que consiste a perfeição do amor fraterno – do que considerar com gratidão a admirável paciência de Cristo, o mais belo dos filhos dos homens (Sl 44,3). Ele apresentou seu rosto cheio de beleza aos ultrajes dos ímpios; deixou-os velar seus olhos que governam o universo com um sinal; expôs seu corpo aos açoites; submeteu às pontadas dos espinhos sua cabeça, que faz tremer os principados e as potestades; entregou-se aos opróbrios e às injúrias; finalmente, suportou com paciência a cruz, os cravos, a lança, o fel e o vinagre, conservando em tudo a doçura, a mansidão e a serenidade.
Depois, como cordeiro levado ao matadouro ou como ovelha diante dos que a tosquiam, ele não abriu a boca (Is 53,7). Ao ouvir esta palavra admirável, cheia de doçura, cheia de amor e de imperturbável serenidade: Pai, perdoa-lhes! (Lc 23,34), quem não abraçaria logo com todo o afeto os seus inimigos? Pai, perdoa-lhes!, disse Jesus. Poderá haver oração que exprima maior mansidão e caridade? Entretanto, Jesus não se contentou em pedir; quis ainda desculpar, e acrescentou: Pai, perdoa-lhes! Eles não sabem o que fazem! (Lc 23,34). São, na verdade, grandes pecadores, mas não sabem avaliar a gravidade de seu pecado. Por isso, Pai, perdoa-lhes! Crucificaram-me, mas não sabem a quem crucificaram, porque, se soubessem, não teriam crucificado o Senhor da glória (1Cor 2,8). Por isso, Pai, perdoa-lhes! Julgaram-me um transgressor da lei, um usurpador da divindade, um sedutor do povo. Ocultei-lhes a minha face, não reconheceram a minha majestade. Por isso, Pai, perdoa-lhes! Eles não sabem o que fazem!
Por conseguinte, se o homem quer amar-se a si mesmo com amor autêntico, não se deixa corromper por nenhum prazer da carne. Para não sucumbir a essa concupiscência da carne, dirija todo o seu afeto à admirável humanidade do Senhor. Para encontrar mais perfeito e suave repouso nas delícias da caridade fraterna, abrace também com verdadeiro amor os seus inimigos. Mas, para que esse fogo divino não arrefeça diante das injúrias,   contemple sem cessar, com os olhos do coração, a serena paciência de seu amado Senhor e Salvador.

quinta-feira, 5 de março de 2020

Quinta-feira da 1ª semana da Quaresma


Segunda leitura 
 
Das Homilias de Santo Astério de Amaséia, bispo 
 
(Hom. 13:PG40,355-358.362) 
 
(Séc.V) 
 
Imitemos o exemplo de Cristo como pastor 
 
Se quereis parecer-vos com Deus porque fostes criados à sua imagem, imitai o seu exemplo. Se sois cristãos, nome que já é uma proclamação de caridade, imitai o amor de Cristo. Considerai as riquezas de sua bondade. Estando para vir como homem ao meio dos homens, enviou à sua frente João, como pregoeiro e exemplo de penitência; e antes de João, tinha enviado todos os profetas para ensinarem aos homens o arrependimento, a volta ao bom caminho e a conversão a uma vida melhor.
Vindo, pouco depois, ele mesmo em pessoa, proclamou com a sua voz: Vinde a mim, todos vós que estais cansados e fatigados e eu vos darei descanso (Mt 11,28). Como acolheu ele os que ouviram a sua voz? Concedeu-lhes sem dificuldade o perdão dos pecados e a imediata libertação de seus sofrimentos. O Verbo os santificou, o Espírito os confirmou; o velho homem foi sepultado nas águas do batismo e o novo, regenerado,   resplandeceu pela graça. Que conseguimos ainda? De inimigos de Deus, nos tornamos amigos; de estranhos, filhos; e de pagãos, santos e piedosos.
Imitemos o exemplo de Cristo como pastor. Contemplemos os evangelhos e vendo neles, como num espelho, o exemplo de sua solicitude e bondade, aprendamos a praticá-las. Vejo ali, em parábolas e figuras, um pastor de cem ovelhas que, ao verificar que uma delas se afastara do rebanho e andava sem rumo, não permaneceu com as outras que pastavam tranqüilamente. Saiu à sua procura, atravessando vales e florestas, transpondo altos e escarpados montes, percorrendo desertos, num esforço incansável até encontrá-la.
Tendo-a encontrado, não a castigou nem a obrigou com violência a voltar para o rebanho; pelo contrário, tomando-a nos ombros e tratando-a com doçura, levou-a para o aprisco, alegrando-se mais por esta única ovelha recuperada do que por todas as outras. Consideremos a realidade oculta na obscuridade da parábola. Nem esta ovelha nem este pastor são propriamente uma ovelha e um pastor; são imagem de uma realidade mais profunda.
Há nesses exemplos um ensinamento sagrado: nunca devemos considerar os homens como perdidos e sem esperança de salvação,nem deixar de ajudar com todo empenho os que se encontram em perigo nem demorar em prestar-lhes auxílio. Pelo contrário, reconduzamos ao bom caminho os que se afastaram da verdadeira vida e alegremo-nos com a sua volta à comunhão daqueles que vivem reta e piedosamente.

quarta-feira, 4 de março de 2020

Quarta-feira da 1ª semana da Quaresma


Segunda leitura 
 
Das Demonstrações de Afraates, bispo 
 
(Dem.11,De circumcisione, 11-12:PS 1,498-503) 
 
(Séc.IV) 
 
A circuncisão do coração 
 
A lei e a aliança foram totalmente mudadas. Primeiramente Deus substituiu o pacto com Adão por outro que estabeleceu com Noé; e ainda estabeleceu outro com Abraão, substituindo-o depois por um novo, feito com Moisés. Como a aliança mosaica não era observada, ao chegar a plenitude dos tempos, Deus firmou uma aliança que não seria mais mudada. Com efeito, a Adão Deus ordenara não comer da árvore da vida, a Noé dera o arco-íris, a Abraão, já escolhido por causa da sua fé, deu mais tarde a circuncisão, como sinal característico de seus descendentes; a Moisés deu o cordeiro pascal para ser imolado como propiciação pelo povo. Todas essas alianças eram diferentes umas das outras. Mas a circuncisão que agrada ao autor de todas elas é aquela de que fala Jeremias: Circuncidai o vosso coração (Jr 4,4). Pois se o pacto estabelecido por Deus com Abraão foi firme, também este é firme e imutável e não seria possível estabelecer depois outra lei, seja por parte dos que estão fora da Lei ou dos que a ela estão submetidos.
O Senhor deu a lei a Moisés, com todas as suas observâncias e preceitos; como não cumpriram, anulou a lei e seus preceitos e prometeu fazer uma nova aliança, que seria, como disse, diferente da primeira, embora fosse um só o doador de ambas. E é esta a aliança que prometeu dar: Todos se reconhecerão, do menor ao maior deles (Jr 31,34). Nessa aliança não há mais a circuncisão da carne como sinal de pertença a seu povo.
Sabemos com certeza, caríssimos irmãos, que durante várias gerações Deus estabeleceu leis que estiveram em vigor enquanto foi de seu agrado, e que mais tarde caíram em desuso, como disse o Apóstolo: “No passado, o reino de Deus assumiu formas diversas, segundo os diversos tempos”. O nosso Deus é veraz e os seus preceitos são fidelíssimos. Por isso, cada uma das alianças foi em seu tempo firme e verdadeira. Agora, os circuncisos de coração têm a vida por meio da nova circuncisão que se realiza no verdadeiro Jordão, isto é, por meio do batismo para a remissão dos pecados.
Josué, filho de Nun, com uma faca de pedra circuncidou o povo pela segunda vez, quando ele e seu povo atravessaram o rio Jordão. Jesus, nosso Salvador, circuncidou pela segunda vez, com a circuncisão do coração,os povos que nele creram purificados pelo batismo e circuncidados com a espada que é a palavra de Deus, mais cortante do que qualquer espada de dois gumes (Hb 4,12). Josué, filho de Nun, introduziu o povo na terra da promissão; Jesus, nosso Salvador, prometeu a terra da vida a todos que atravessassem o Jordão, cressem nele e fossem circuncidados no coração. Felizes, portanto, os que foram circuncidados em seu coração e renasceram das águas da segunda circuncisão! Estes receberão a herança prometida, juntamente com Abraão, guia fiel e pai de todos os povos, porque a sua fé lhe foi atribuída como justiça.

terça-feira, 3 de março de 2020

Terça-feira da 1ª semana da Quaresma


Segunda leitura 
 
Do Tratado sobre a Oração do Senhor, de São Cipriano, bispo e mártir 
 
(Cap.1-3: CSEL 3,267-268) 
 
(Séc.III) 
 
Quem nos deu a vida também nos ensinou a orar 
 
Os preceitos evangélicos, irmãos caríssimos, não são outra coisa que ensinamentos divinos, fundamentos para edificar a esperança, bases para consolidar a fé, alimento para revigorar o coração, guias para mostrar o caminho, garantias para obter a salvação. Enquanto instruem na terra os espíritos dóceis dos que crêem, eles os conduzem para o Reino dos céus. Outrora quis Deus falar e fazer-nos ouvir de muitas maneiras pelos profetas, seus servos. Mas muito mais sublime é o que nos diz o Filho, a Palavra de Deus, que já estava presente nos profetas e agora dá testemunho pela sua própria voz. Ele não manda mais preparar o caminho para aquele que há de vir, mas vem, ele próprio, mostrar-nos e abrir-nos o caminho para que nós, outrora cegos e imprevidentes,errantes nas trevas da morte, iluminados agora pela luz da graça, sigamos o caminho da vida, sob a proteção e guia do Senhor. Entre as exortações salutares e os preceitos divinos com que orienta seu povo para a salvação, o Senhor ensinou o modo de orar e nos instruiu e aconselhou sobre o que havemos de pedir.
Quem nos deu a vida, também nos ensinou a orar com a mesma bondade com que se dignou conceder-nos tantos outros benefícios, a fim de que, dirigindo-nos ao Pai com a súplica e oração que o Filho nos ensinou, sejamos mais facilmente ouvidos. Jesus havia predito que chegaria a hora em que os verdadeiros adoradores adorariam o Pai em espírito e em verdade. E cumpriu o que prometera. De fato, tendo nós recebido por sua graça santificadora o Espírito e a verdade, podemos adorar a Deus verdadeira e espiritualmente segundo os seus ensinamentos.
Pode haver, com efeito, oração mais espiritual do que aquela que nos foi ensinada por Cristo, que também nos enviou o Espírito Santo? Pode haver prece mais verdadeira aos olhos do Pai do que aquela que saiu dos lábios do próprio Filho que é a Verdade? Assim, orar de maneira diferente da que o Senhor nos ensinou não é só ignorância, mas também culpa, pois ele mesmo disse: Anulais o mandamento de Deus a fim de guardar as vossas tradições (cf. Mc 7,9).
Oremos, portanto, irmãos caríssimos, como Deus, nosso Mestre, nos ensinou. A oração agradável e querida por Deus é a que rezamos com as suas próprias palavras, fazendo subir aos seus ouvidos a oração de Cristo. Reconheça o Pai as palavras de seu Filho, quando oramos. Aquele que habita interiormente em nosso coração, esteja também em nossa voz; e já que o temos junto ao Pai como advogado por causa de nossos pecados, digamos as palavras deste nosso advogado quando, como pecadores, suplicarmos por nossas faltas. Se ele disse que tudo o que pedirmos ao Pai em seu nome nos será dado (cf. Jo 14,13), quanto mais eficaz não será a nossa súplica para obtermos o que pedimos em nome de Cristo, se pedirmos com sua própria oração!

segunda-feira, 2 de março de 2020

Segunda-feira da 1ª semana da Quaresma


Segunda leitura 
 
Dos Sermões de São Gregório de Nazianzo, bispo 
 
(Oratio 14, De pauperum amore, 23-24:PG35 889-890) 
 
(Séc.IV) 
 
Manifestemos uns para com os outros a bondade do Senhor 
 
Considera de onde te vem a existência, a respiração, a inteligência, a sabedoria, e, acima de tudo, o conhecimento de Deus, a esperança do reino dos céus e a contemplação da glória que, no tempo presente, é ainda imperfeita como num espelho e em enigma, mas que um dia haverá de ser mais plena e mais pura. Considera de onde te vem a graça de seres filho de Deus, herdeiro com Cristo e, falando com mais ousadia, de teres também sido elevado à condição divina. De onde e de quem vem tudo isso?
Ou ainda, – se quisermos falar de coisas menos importantes e que podemos ver com os nossos olhos – quem te concedeu a felicidade de contemplar a beleza do céu, o curso do sol, a órbita da lua, a multidão dos astros e aquela harmonia e ordem que se manifestam em tudo isso como uma lira afinada? Quem te deu as chuvas, as lavouras, os alimentos, as artes, a morada, as leis, a sociedade, a vida tranqüila e civilizada, a amizade e a alegria da vida familiar? De onde te vem poderes dispor dos animais, os domésticos para teu serviço e os outros para teu alimento? Quem te constituiu senhor e rei de todas as coisas que há na face da terra? E, porque não é possível enumerar uma a uma todas as coisas, pergunto finalmente: quem deu ao homem tudo aquilo que o torna superior a todos os outros seres vivos? Porventura não foi Deus?

Pois bem, agora, o que ele te pede em compensação por tudo, e acima de tudo, não é o teu amor para com ele e para com o próximo? Sendo tantos e tão grandes os dons que recebemos ou esperamos dele, não nos envergonharemos de não lhe oferecer nem mesmo esta única retribuição que pede, isto é, o amor? E se ele, embora sendo Deus e Senhor, não se envergonha de ser chamado nosso Pai, poderíamos nós fechar o coração aos nossos irmãos?
De modo algum, meus irmãos e amigos, de modo algum sejamos maus administradores dos bens que nos foram concedidos pela graça divina, a fim de não ouvirmos a repreensão de Pedro: “Envergonhai-vos, vós que vos apoderais do que não é vosso; imitai a justiça de Deus e assim ninguém será pobre”. Não nos preocupemos em acumular e conservar riquezas, enquanto outros padecem necessidade, para não merecermos aquelas duras e  ameaçadoras palavras do profeta Amós: Tomai cuidado, vós que andais dizendo: “Quando passará o mês para vendermos; e o sábado, para abrirmos nossos celeiros?” (cf. Am 8,5).
Imitemos aquela excelsa e primeira lei de Deus, que faz chover sobre os justos e os pecadores e faz o sol igualmente levantar-se para todos; que oferece aos animais que vivem na terra a extensão dos campos, as fontes, os rios e as florestas; que dá às aves a amplidão dos céus, e aos animais aquáticos, a vastidão das águas; que proporciona a todos, liberalmente, os meios necessários para a sua subsistência, sem restrições, sem condições, sem fronteiras; que põe tudo em comum, à disposição de todos eles, com abundância e generosidade, de modo que nada falte a ninguém. Assim   procede Deus para com as suas criaturas, a fim de conceder a cada um os bens de que necessita segundo a sua natureza e dignidade, e manifestar a todos a riqueza da sua bondade.

domingo, 1 de março de 2020

Domingo da 1ª semana da Quaresma


Segunda leitura 
 

Dos Comentários sobre os Salmos, de Santo Agostinho, bispo 
 
(Ps 60, 2-3:CCL39,766) 
 
(Séc.V) 
 

No Cristo fomos tentados e nele vencemos o demônio 
 
Ouvi, ó Deus, a minha súplica, atendei a minha oração (Sl 60,2). Quem é que fala assim? Parece ser um só: Dos confins da terra a vós eu clamo, e em mim o coração já desfalece (Sl 60,3). Então já não é um só, e contudo é somente um, porque o Cristo, de quem todos somos membros, é um só. Como pode um único homem clamar dos confins da terra? Quem clama dos confins da terra é aquela herança a respeito da qual foi dito ao próprio Filho: Pede-me e te darei as nações como herança e os confins da terra por domínio (Sl 2,8).

Portanto, é esse domínio de Cristo, essa herança de Cristo, esse corpo de Cristo, essa Igreja de Cristo, essa unidade que somos nós, que clama dos confins da terra. E o que clama? O que eu disse acima: Ouvi, ó Deus, a minha súplica, atendei a minha oração; dos confins da terra a vós eu clamo. Sim, clamei a vós dos confins da terra, isto é, de toda parte. Mas por que clamei? Porque em mim o coração já desfalece. Revela com estas palavras que ele está presente a todos os povos no mundo inteiro, não rodeado de grande glória mas no meio de grandes tentações.

Com efeito, nossa vida,enquanto somos peregrinos neste mundo, não pode estar livre de tentações, pois é através delas que se realiza nosso progresso e ninguém pode conhecer-se a si mesmo sem ter sido tentado. Ninguém pode vencer sem ter combatido, nem pode combater se não tiver inimigo e tentações.

Aquele que clama dos confins da terra está angustiado, mas não está abandonado. Porque foi a nós mesmos, que somos o seu corpo, que o Senhor quis prefigurar em seu próprio corpo, no qual já morreu, ressuscitou e subiu ao céu, para que os membros tenham a certeza de chegar também aonde a cabeça os precedeu. Portanto, o Senhor nos representou em sua pessoa quando quis ser tentado por Satanás. Líamos há pouco no Evangelho que nosso Senhor Jesus Cristo foi tentado pelo demônio no deserto. De fato, Cristo foi tentado pelo demônio. Mas em Cristo também tu eras tentado, porque ele assumiu a tua condição humana, para te dar a sua salvação; assumiu a tua morte, para te dar a sua vida; assumiu os teus ultrajes, para te dar a sua glória; por conseguinte, assumiu as tuas tentações, para te dar a sua vitória. Se nele fomos tentados, nele também vencemos o demônio. Consideras que o Cristo foi tentado e não consideras que ele venceu? Reconhece-te nele em sua tentação, reconhece-te nele em sua vitória. O Senhor poderia impedir o demônio de aproximar-se dele; mas, se não fosse tentado, não te daria o exemplo de como vencer na tentação.