Segunda leitura
Da Constituição pastoral Gaudium et Spes sobre a Igreja no
mundo de hoje, do Concílio Vaticano II
(N.9-10)
(Séc.XX)
As interrogações mais profundas do gênero humano
O mundo moderno apresenta-se simultaneamente poderoso e fraco,
capaz do melhor e do pior; abre-se diante dele o caminho da liberdade
ou da escravidão, do progresso ou da regressão, da fraternidade e do
ódio. Por outro lado, o homem toma consciência de que depende dele a
boa orientação das forças por ele despertadas e que podem oprimi-lo ou
servi-lo. Eis por que se interroga a si mesmo. Na verdade, os
desequilíbrios que atormentam o mundo moderno estão ligados a um
desequilíbrio mais profundo, que se enraíza no coração do homem. No
íntimo do próprio homem, muitos elementos lutam entre si. De um lado,
ele experimenta, como criatura, suas múltiplas limitações; por outro,
sente-se ilimitado em seus desejos e chamado a uma vida superior.
Atraído por muitas solicitações, é continuamente obrigado a
escolher e a renunciar. Mais ainda: fraco e pecador, faz muitas vezes o
que não quer e não faz o que desejaria. Em suma, é em si mesmo que o
homem sofre a divisão que dá origem a tantas e tão grandes discórdias
na sociedade. Muitos, sem dúvida, que levam uma vida impregnada de
materialismo prático, não podem ter uma clara percepção desta situação
dramática; ou, oprimidos pela miséria, sentem-se incapazes de
prestar-lhe atenção. Outros, em grande número, julgam encontrar
satisfação nas diversas interpretações da realidade que lhes são
propostas. Alguns, porém, esperam unicamente do esforço humano a
verdadeira e plena libertação da humanidade, e estão persuadidos de que
o futuro domínio do homem sobre a terra dará satisfação a todos os
desejos de seu coração.
Não faltam também os que, desesperando de encontrar o sentido
da vida, louvam a audácia daqueles que, julgando a existência humana
vazia de qualquer significado próprio, se esforçam por encontrar todo o
seu valor apoiando-se apenas no próprio esforço. Contudo, diante da
atual evolução do mundo, cresce o número daqueles que formulam as
questões mais fundamentais ou as percebem com nova acuidade. Que é o
homem? Qual é o sentido do sofrimento, do mal e da morte que, apesar de
tão grandes progressos, continuam a existir? Para que servem
semelhantes vitórias, conseguidas a tanto custo? Que pode o
homem dar à sociedade e dela esperar? Que haverá depois desta vida
terrestre? A Igreja, porém, acredita que Jesus Cristo, morto e
ressuscitado por todo o gênero humano, oferece ao homem, pelo Espírito
Santo, luz e forças que lhe permitirão corresponder à sua vocação
suprema; ela crê que não há debaixo do céu outro nome dado aos homens
pelo qual possam ser salvos. Crê igualmente que a chave, o centro e o
fim de toda a história humana encontra-se em seu Senhor e Mestre. A
Igreja afirma, além disso, que, subjacente a todas as transformações,
permanecem imutáveis muitas coisas que têm seu fundamento último em
Cristo, o mesmo ontem, hoje e sempre.
Segunda leitura
Do “Espelho da Caridade”, do Bem-aventurado Elredo, abade
(Lib. 3,5: PL 195,582)
(Séc.XI)
O amor fraterno a exemplo de Cristo
Nada nos impele tanto ao amor dos inimigos – e é nisso que
consiste a perfeição do amor fraterno – do que considerar com gratidão
a admirável paciência de Cristo, o mais belo dos filhos dos homens
(Sl 44,3). Ele apresentou seu rosto cheio de beleza aos ultrajes dos
ímpios; deixou-os velar seus olhos que governam o universo com um
sinal; expôs seu corpo aos açoites; submeteu às pontadas dos espinhos
sua cabeça, que faz tremer os principados e as potestades; entregou-se
aos opróbrios e às injúrias; finalmente, suportou com paciência a cruz,
os cravos, a lança, o fel e o vinagre, conservando em tudo a doçura, a
mansidão e a serenidade.
Depois, como cordeiro levado ao matadouro ou como ovelha
diante dos que a tosquiam, ele não abriu a boca (Is 53,7). Ao ouvir
esta palavra admirável, cheia de doçura, cheia de amor e de
imperturbável serenidade: Pai, perdoa-lhes! (Lc 23,34), quem
não abraçaria logo com todo o afeto os seus inimigos? Pai,
perdoa-lhes!, disse Jesus. Poderá haver oração que exprima maior
mansidão e caridade? Entretanto, Jesus não se contentou em pedir; quis
ainda desculpar, e acrescentou: Pai, perdoa-lhes! Eles não sabem o
que fazem! (Lc 23,34). São, na verdade, grandes pecadores, mas não
sabem avaliar a gravidade de seu pecado. Por isso, Pai, perdoa-lhes!
Crucificaram-me, mas não sabem a quem crucificaram, porque, se
soubessem, não teriam crucificado o Senhor da glória (1Cor 2,8).
Por isso, Pai, perdoa-lhes! Julgaram-me um transgressor da lei, um
usurpador da divindade, um sedutor do povo. Ocultei-lhes a minha face,
não reconheceram a minha majestade. Por isso, Pai, perdoa-lhes! Eles
não sabem o que fazem!
Por conseguinte, se o homem quer amar-se a si mesmo com amor
autêntico, não se deixa corromper por nenhum prazer da carne. Para não
sucumbir a essa concupiscência da carne, dirija todo o seu afeto à
admirável humanidade do Senhor. Para encontrar mais perfeito e suave
repouso nas delícias da caridade fraterna, abrace também com verdadeiro
amor os seus inimigos. Mas, para que esse fogo divino não arrefeça
diante das injúrias, contemple sem cessar, com os olhos do
coração, a serena paciência de seu amado Senhor e Salvador.
Segunda leitura
Das Homilias de Santo Astério de Amaséia, bispo
(Hom. 13:PG40,355-358.362)
(Séc.V)
Imitemos o exemplo de Cristo como pastor
Se quereis parecer-vos com Deus porque fostes criados à sua
imagem, imitai o seu exemplo. Se sois cristãos, nome que já é uma
proclamação de caridade, imitai o amor de Cristo. Considerai as
riquezas de sua bondade. Estando para vir como homem ao meio dos
homens, enviou à sua frente João, como pregoeiro e exemplo de
penitência; e antes de João, tinha enviado todos os profetas para
ensinarem aos homens o arrependimento, a volta ao bom caminho e a
conversão a uma vida melhor.
Vindo, pouco depois, ele mesmo em pessoa, proclamou com a sua
voz: Vinde a mim, todos vós que estais cansados e fatigados e eu vos
darei descanso (Mt 11,28). Como acolheu ele os que ouviram a sua voz?
Concedeu-lhes sem dificuldade o perdão dos pecados e a imediata
libertação de seus sofrimentos. O Verbo os santificou, o Espírito os
confirmou; o velho homem foi sepultado nas águas do batismo e o novo,
regenerado, resplandeceu pela graça. Que conseguimos ainda?
De inimigos de Deus, nos tornamos amigos; de estranhos, filhos; e de
pagãos, santos e piedosos.
Imitemos o exemplo de Cristo como pastor. Contemplemos os
evangelhos e vendo neles, como num espelho, o exemplo de sua solicitude
e bondade, aprendamos a praticá-las. Vejo ali, em parábolas e figuras,
um pastor de cem ovelhas que, ao verificar que uma delas se afastara do
rebanho e andava sem rumo, não permaneceu com as outras que pastavam
tranqüilamente. Saiu à sua procura, atravessando vales e florestas,
transpondo altos e escarpados montes, percorrendo desertos, num esforço
incansável até encontrá-la.
Tendo-a encontrado, não a castigou nem a obrigou com violência
a voltar para o rebanho; pelo contrário, tomando-a nos ombros e
tratando-a com doçura, levou-a para o aprisco, alegrando-se mais por
esta única ovelha recuperada do que por todas as outras. Consideremos a
realidade oculta na obscuridade da parábola. Nem esta ovelha nem este
pastor são propriamente uma ovelha e um pastor; são imagem de uma
realidade mais profunda.
Há nesses exemplos um ensinamento sagrado: nunca devemos
considerar os homens como perdidos e sem esperança de salvação,nem
deixar de ajudar com todo empenho os que se encontram em perigo nem
demorar em prestar-lhes auxílio. Pelo contrário, reconduzamos ao bom
caminho os que se afastaram da verdadeira vida e alegremo-nos com a sua
volta à comunhão daqueles que vivem reta e piedosamente.
Segunda leitura
Das Demonstrações de Afraates, bispo
(Dem.11,De circumcisione,
11-12:PS 1,498-503)
(Séc.IV)
A circuncisão do coração
A lei e a aliança foram totalmente mudadas. Primeiramente Deus
substituiu o pacto com Adão por outro que estabeleceu com Noé; e ainda
estabeleceu outro com Abraão, substituindo-o depois por um novo, feito
com Moisés. Como a aliança mosaica não era observada, ao chegar a
plenitude dos tempos, Deus firmou uma aliança que não seria mais
mudada. Com efeito, a Adão Deus ordenara não comer da árvore da vida, a
Noé dera o arco-íris, a Abraão, já escolhido por causa da sua fé, deu
mais tarde a circuncisão, como sinal característico de seus
descendentes; a Moisés deu o cordeiro pascal para ser imolado como
propiciação pelo povo. Todas essas alianças eram diferentes umas das
outras. Mas a circuncisão que agrada ao autor de todas elas é aquela de
que fala Jeremias: Circuncidai o vosso coração (Jr 4,4). Pois se o
pacto estabelecido por Deus com Abraão foi firme, também este é firme e
imutável e não seria possível estabelecer depois outra lei, seja por
parte dos que estão fora da Lei ou dos que a ela estão submetidos.
O Senhor deu a lei a Moisés, com todas as suas observâncias e
preceitos; como não cumpriram, anulou a lei e seus preceitos e prometeu
fazer uma nova aliança, que seria, como disse, diferente da primeira,
embora fosse um só o doador de ambas. E é esta a aliança que prometeu
dar: Todos se reconhecerão, do menor ao maior deles (Jr 31,34). Nessa
aliança não há mais a circuncisão da carne como sinal de pertença a seu
povo.
Sabemos com certeza, caríssimos irmãos, que durante várias
gerações Deus estabeleceu leis que estiveram em vigor enquanto foi de
seu agrado, e que mais tarde caíram em desuso, como disse o Apóstolo:
“No passado, o reino de Deus assumiu formas diversas, segundo os
diversos tempos”. O nosso Deus é veraz e os seus preceitos são
fidelíssimos. Por isso, cada uma das alianças foi em seu tempo firme e
verdadeira. Agora, os circuncisos de coração têm a vida por meio da
nova circuncisão que se realiza no verdadeiro Jordão, isto é, por meio
do batismo para a remissão dos pecados.
Josué, filho de Nun, com uma faca de pedra circuncidou o povo
pela segunda vez, quando ele e seu povo atravessaram o rio Jordão.
Jesus, nosso Salvador, circuncidou pela segunda vez, com a circuncisão
do coração,os povos que nele creram purificados pelo batismo e
circuncidados com a espada que é a palavra de Deus, mais cortante do
que qualquer espada de dois gumes (Hb 4,12). Josué, filho de Nun,
introduziu o povo na terra da promissão; Jesus, nosso Salvador,
prometeu a terra da vida a todos que atravessassem o Jordão, cressem
nele e fossem circuncidados no coração. Felizes, portanto, os que foram
circuncidados em seu coração e renasceram das águas da segunda
circuncisão! Estes receberão a herança prometida, juntamente com
Abraão, guia fiel e pai de todos os povos, porque a sua fé lhe foi
atribuída como justiça.
Segunda leitura
Do Tratado sobre a Oração do Senhor, de São Cipriano, bispo e
mártir
(Cap.1-3: CSEL 3,267-268)
(Séc.III)
Quem nos deu a vida também
nos ensinou a orar
Os preceitos evangélicos, irmãos caríssimos, não são outra
coisa que ensinamentos divinos, fundamentos para edificar a esperança,
bases para consolidar a fé, alimento para revigorar o coração, guias
para mostrar o caminho, garantias para obter a salvação. Enquanto
instruem na terra os espíritos dóceis dos que crêem, eles os conduzem
para o Reino dos céus. Outrora quis Deus falar e fazer-nos ouvir de
muitas maneiras pelos profetas, seus servos. Mas muito mais sublime é o
que nos diz o Filho, a Palavra de Deus, que já estava presente nos
profetas e agora dá testemunho pela sua própria voz. Ele não manda mais
preparar o caminho para aquele que há de vir, mas vem, ele próprio,
mostrar-nos e abrir-nos o caminho para que nós, outrora cegos e
imprevidentes,errantes nas trevas da morte, iluminados agora pela luz
da graça, sigamos o caminho da vida, sob a proteção e guia do Senhor.
Entre as exortações salutares e os preceitos divinos com que orienta
seu povo para a salvação, o Senhor ensinou o modo de orar e nos
instruiu e aconselhou sobre o que havemos de pedir.
Quem nos deu a vida, também nos ensinou a orar com a mesma
bondade com que se dignou conceder-nos tantos outros benefícios, a fim
de que, dirigindo-nos ao Pai com a súplica e oração que o Filho nos
ensinou, sejamos mais facilmente ouvidos. Jesus havia predito que
chegaria a hora em que os verdadeiros adoradores adorariam o Pai em
espírito e em verdade. E cumpriu o que prometera. De fato, tendo nós
recebido por sua graça santificadora o Espírito e a verdade, podemos
adorar a Deus verdadeira e espiritualmente segundo os seus
ensinamentos.
Pode haver, com efeito, oração mais espiritual do que aquela
que nos foi ensinada por Cristo, que também nos enviou o Espírito
Santo? Pode haver prece mais verdadeira aos olhos do Pai do que aquela
que saiu dos lábios do próprio Filho que é a Verdade? Assim, orar de
maneira diferente da que o Senhor nos ensinou não é só ignorância, mas
também culpa, pois ele mesmo disse: Anulais o mandamento de Deus a fim
de guardar as vossas tradições (cf. Mc 7,9).
Oremos, portanto, irmãos caríssimos, como Deus, nosso Mestre,
nos ensinou. A oração agradável e querida por Deus é a que rezamos com
as suas próprias palavras, fazendo subir aos seus ouvidos a oração de
Cristo. Reconheça o Pai as palavras de seu Filho, quando oramos. Aquele
que habita interiormente em nosso coração, esteja também em nossa voz;
e já que o temos junto ao Pai como advogado por causa de nossos
pecados, digamos as palavras deste nosso advogado quando, como
pecadores, suplicarmos por nossas faltas. Se ele disse que tudo o que
pedirmos ao Pai em seu nome nos será dado (cf. Jo 14,13), quanto mais
eficaz não será a nossa súplica para obtermos o que pedimos em nome de
Cristo, se pedirmos com sua própria oração!
Segunda leitura
Dos Sermões de São Gregório de Nazianzo, bispo
(Oratio 14, De pauperum amore,
23-24:PG35 889-890)
(Séc.IV)
Manifestemos uns para com os outros a bondade do Senhor
Considera de onde te vem a existência, a respiração, a
inteligência, a sabedoria, e, acima de tudo, o conhecimento de Deus, a
esperança do reino dos céus e a contemplação da glória que, no tempo
presente, é ainda imperfeita como num espelho e em enigma, mas que um
dia haverá de ser mais plena e mais pura. Considera de onde te vem a
graça de seres filho de Deus, herdeiro com Cristo e, falando com mais
ousadia, de teres também sido elevado à condição divina. De onde e de
quem vem tudo isso?
Ou ainda, – se quisermos falar de coisas menos importantes e
que podemos ver com os nossos olhos – quem te concedeu a felicidade de
contemplar a beleza do céu, o curso do sol, a órbita da lua, a multidão
dos astros e aquela harmonia e ordem que se manifestam em tudo isso
como uma lira afinada? Quem te deu as chuvas, as lavouras, os
alimentos, as artes, a morada, as leis, a sociedade, a vida tranqüila e
civilizada, a amizade e a alegria da vida familiar? De onde te vem
poderes dispor dos animais, os domésticos para teu serviço e os outros
para teu alimento? Quem te constituiu senhor e rei de todas as coisas
que há na face da terra? E, porque não é possível enumerar uma a uma
todas as coisas, pergunto finalmente: quem deu ao homem tudo aquilo que
o torna superior a todos os outros seres vivos? Porventura não foi
Deus?
Pois bem, agora, o que ele te pede em compensação por tudo, e acima de
tudo, não é o teu amor para com ele e para com o próximo? Sendo tantos
e tão grandes os dons que recebemos ou esperamos dele, não nos
envergonharemos de não lhe oferecer nem mesmo esta única retribuição
que pede, isto é, o amor? E se ele, embora sendo Deus e Senhor, não se
envergonha de ser chamado nosso Pai, poderíamos nós fechar o coração
aos nossos irmãos?
De modo algum, meus irmãos e amigos, de modo algum sejamos maus
administradores dos bens que nos foram concedidos pela graça divina, a
fim de não ouvirmos a repreensão de Pedro: “Envergonhai-vos, vós que
vos apoderais do que não é vosso; imitai a justiça de Deus e assim
ninguém será pobre”. Não nos preocupemos em acumular e conservar
riquezas, enquanto outros padecem necessidade, para não merecermos
aquelas duras e ameaçadoras palavras do profeta Amós: Tomai
cuidado, vós que andais dizendo: “Quando passará o mês para vendermos;
e o sábado, para abrirmos nossos celeiros?” (cf. Am 8,5).
Imitemos aquela excelsa e primeira lei de Deus, que faz chover
sobre os justos e os pecadores e faz o sol igualmente levantar-se para
todos; que oferece aos animais que vivem na terra a extensão dos
campos, as fontes, os rios e as florestas; que dá às aves a amplidão
dos céus, e aos animais aquáticos, a vastidão das águas; que
proporciona a todos, liberalmente, os meios necessários para a sua
subsistência, sem restrições, sem condições, sem fronteiras; que põe
tudo em comum, à disposição de todos eles, com abundância e
generosidade, de modo que nada falte a ninguém. Assim
procede Deus para com as suas criaturas, a fim de conceder a cada um os
bens de que necessita segundo a sua natureza e dignidade, e manifestar
a todos a riqueza da sua bondade.
Segunda leitura
Dos Comentários sobre os Salmos, de Santo Agostinho, bispo
(Ps 60, 2-3:CCL39,766)
(Séc.V)
No Cristo fomos tentados e nele vencemos o demônio
Ouvi, ó Deus, a minha súplica, atendei a minha oração (Sl
60,2). Quem é que fala assim? Parece ser um só: Dos confins da terra a
vós eu clamo, e em mim o coração já desfalece (Sl 60,3). Então já não é
um só, e contudo é somente um, porque o Cristo, de quem todos somos
membros, é um só. Como pode um único homem clamar dos confins da terra?
Quem clama dos confins da terra é aquela herança a respeito da qual foi
dito ao próprio Filho: Pede-me e te darei as nações como herança e os
confins da terra por domínio (Sl 2,8).
Portanto, é esse domínio de Cristo, essa herança de Cristo,
esse corpo de Cristo, essa Igreja de Cristo, essa unidade que somos
nós, que clama dos confins da terra. E o que clama? O que eu disse
acima: Ouvi, ó Deus, a minha súplica, atendei a minha oração; dos
confins da terra a vós eu clamo. Sim, clamei a vós dos confins da terra, isto é, de
toda parte. Mas por que clamei? Porque em mim o coração já desfalece.
Revela com estas palavras que ele está presente a todos os povos no
mundo inteiro, não rodeado de grande glória mas no meio de grandes
tentações.
Com efeito, nossa vida,enquanto somos peregrinos neste mundo,
não pode estar livre de tentações, pois é através delas que se realiza
nosso progresso e ninguém pode conhecer-se a si mesmo sem ter sido
tentado. Ninguém pode vencer sem ter combatido, nem pode combater se
não tiver inimigo e tentações.
Aquele que clama dos confins da terra está angustiado, mas não
está abandonado. Porque foi a nós mesmos, que somos o seu corpo, que o
Senhor quis prefigurar em seu próprio corpo, no qual já morreu,
ressuscitou e subiu ao céu, para que os membros tenham a certeza de
chegar também aonde a cabeça os precedeu. Portanto, o Senhor nos
representou em sua pessoa quando quis ser tentado por Satanás. Líamos
há pouco no Evangelho que nosso Senhor Jesus Cristo foi tentado pelo
demônio no deserto. De fato, Cristo foi tentado pelo demônio. Mas em
Cristo também tu eras tentado, porque ele assumiu a tua condição
humana, para te dar a sua salvação; assumiu a tua morte, para te dar a
sua vida; assumiu os teus ultrajes, para te dar a sua glória; por
conseguinte, assumiu as tuas tentações, para te dar a sua vitória. Se
nele fomos tentados, nele também vencemos o demônio. Consideras que o
Cristo foi tentado e não consideras que ele venceu? Reconhece-te nele
em sua tentação, reconhece-te nele em sua vitória. O Senhor poderia
impedir o demônio de aproximar-se dele; mas, se não fosse tentado, não
te daria o exemplo de como vencer na tentação.