sábado, 14 de dezembro de 2019

SÃO JOÃO DA CRUZ, PRESBÍTERO E DOUTOR DA IGREJA



 Nasceu em Fontíveros (Espanha), cerca do ano de 1542. Depois de algum tempo passado na Ordem dos Carmelitas, tornou-se a partir de 1568 o primeiro dos frades na reforma de sua Ordem, persuadido por Santa Teresa de Jesus, tendo por isso suportado inúmeros sofrimentos e trabalhos. Morreu em Úbeda, no ano de 1591, com grande fama de santidade e sabedoria, de que dão testemunho as obras espirituais que escreveu.


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Do Cântico espiritual, de São João da Cruz, presbítero

(Red. B, str. 36-37, Edit. E. Pacho, S. Juan de la Cruz, Obras completas, Burgos, 1982, p. 1124-1135) 

(Séc. XVI) 


Conhecimento do mistério escondido em Cristo Jesus


Embora os santos doutores tenham explicado muitos mistérios e maravilhas, e pessoas devotadas a esse estado de vida os conheçam, contudo, a maior parte desses mistérios está por ser enunciada, ou melhor, resta para ser entendida. Por isso é preciso cavar fundo em Cristo, que se assemelha a uma mina riquíssima, contendo em si os maiores tesouros; nela por mais que alguém cave em profundidade, nunca encontra fim ou termo. Ao contrário, em toda cavidade aqui e ali novos veios de novas riquezas.

Por este motivo o apóstolo Paulo falou acerca de Cristo: Nele estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência de Deus (Cl 2,3). A alma não pode ter acesso a estes tesouros, nem consegue alcançá-los se não houver antes atravessado e entrado na espessura dos trabalhos, sofrendo interna e externamente e sem ter primeiro recebido de Deus muitos benefícios intelectuais e sensíveis e sem prévio e contínuo exercício espiritual. Tudo isto é, sem dúvida, insignificante; são meras disposições para as sublimes profundidades do conhecimento dos mistérios de Cristo, a mais alta sabedoria a que se pode chegar nesta vida.

Quem dera reconhecessem os homens ser totalmente impossível chegar à espessura das riquezas e da sabedoria de Deus! Importa antes entrar na espessura das labutas, suportar muitos sofrimentos, a ponto de renunciar à consolação e ao desejo dela. Com quanta razão a alma, sedenta da divina sabedoria, escolhe antes em verdade entrar na espessura da cruz.

Por isso, São Paulo exortava os efésios a não desanimarem nas tribulações, a serem fortíssimos, enraizados e fundados na caridade, para que pudessem compreender, com todos os santos, qual a largura, o comprimento, a altura, a profundidade, e conhecer o amor de Cristo, que ultrapassa todo conhecimento, a fim de serem cumulados até receber toda a plenitude de Deus (Ef 3,17-19). Já que a porta por onde se pode entrar até esta preciosa sabedoria é a cruz, e é porta estreita, muitos são os que cobiçam as delícias que por ela se alcançam; pouquíssimos os que desejam por ela entrar.

Sábado da 2ª Semana do Advento


Dos Sermões do Bem-aventurado Isaac, abade do Mosteiro de Stella 
(Sermo 51: PL 194, 1862-1863.1865) 
(Séc. XII) 
Maria e a Igreja 

O Filho de Deus é o primogênito dentre muitos irmãos; sendo Filho único por natureza, associou a si muitos pela graça, para serem um só com ele. Com efeito, a quantos o recebem, deu-lhes capacidade de se tornarem filhos de Deus (Jo 1,12).
Constituído Filho do homem, a muitos constituiu filhos de Deus. Ele, o Filho único, por seu amor e poder associou muitos a si. E todos esses, embora sejam muitos por sua geração segundo a carne, são um só com ele pela regeneração divina.
Um só, portanto, é o Cristo total, cabeça e corpo: Filho único do único Deus nos céus e de uma única mãe na terra. Muitos filhos, e um só Filho. Pois assim como a cabeça e os membros são um só Filho, assim também Maria e a Igreja são uma só Mãe e muitas mães; uma só Virgem e muitas virgens.
Ambas são mães e ambas são virgens; ambas concebem virginalmente do mesmo Espírito; ambas, sem pecado, dão à luz uma descendência para Deus Pai. Maria, imune de todo pecado, deu à luz a Cabeça do corpo; a Igreja, para a remissão de todos os pecados, deu à luz o corpo da Cabeça. Ambas são mães do Cristo, mas nenhuma delas pode, sem a outra, dar à luz o Cristo total.
Por isso, nas Escrituras divinamente inspiradas, o que se atribui de modo geral à Igreja, virgem e mãe, aplica-se particularmente a Maria. E o que se atribui especialmente a Maria, virgem e mãe, pode-se com razão aplicar de modo geral à Igreja, virgem e mãe; e quando o texto se refere a uma delas, pode ser aplicado indistinta e indiferentemente a uma e à outra.
Além disso, cada alma fiel é igualmente, a seu modo, esposa do Verbo de Deus, mãe de Cristo, filha e irmã, virgem e mãe fecunda. É a própria Sabedoria de Deus, o Verbo do Pai, que designa ao mesmo tempo a Igreja em sentido universal, Maria num sentido especial e cada alma fiel em particular.
Eis o que diz a Escritura: E habitarei na herança do Senhor (cf. Eclo 24,7.13). A herança do Senhor é, na sua totalidade, a Igreja, muito especialmente é Maria, e de modo particular, a alma de cada fiel. No tabernáculo do seio de Maria, o Cristo habitou durante nove meses; no tabernáculo da fé da Igreja, habitará até o fim do mundo; e no amor da alma fiel, habitará pelos séculos dos séculos.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

SANTA LUZIA, VIRGEM E MÁRTIR


 Morreu provavelmente em Siracusa, na perseguição de Diocleciano. Desde a Antiguidade seu culto estendeu-se por quase toda a Igreja, e o seu nome foi incluído no Cânon romano. 

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Segunda leitura 

Do livro sobre a virgindade, de Santo Ambrósio, bispo 

(Cap. 12,68.74-75; 13,77-78: PL 16 [Edit. 1845], 281.283.285-286) 

(Sec. IV) 

 Com o esplendor da alma, iluminas a graça do teu corpo 

Tu, uma dentre o povo, uma da plebe, sem dúvida, uma das virgens que com o esplendor da alma iluminas a graça do teu corpo, - e por isso és uma imagem fiel da Igreja! – em teu leito, durante a noite, medita sempre em Cristo e aguarda sua chegada a todo o momento.
 Eis o que  Cristo deseja de ti, eis por que te escolheu. Ele entra, já que a  porta está aberta; não pode faltar, pois prometeu que viria. Abraça aquele que procuravas; aproxima-te dele e serás iluminada; segura-o, roga-lhe que não parta logo, suplica-lhe que não se afaste. Porque o Verbo de Deus corre, não se deixa deter pelo tédio ou por negligência. Que tua alma vá encontrá-lo em sua palavra; segue atentamente a doutrina celeste, porque ele passa depressa.
 Que diz a esposa do Cântico dos Cânticos? Procurei-o e não o encontrei; chamei-o e não me respondeu (Ct 5,6). Se partiu tão depressa aquele que chamaste, a quem suplicaste e a quem abriste a porta, ja ó julgues ter-lhe desagradado. Muitas vezes ele permite que sejamos postos à prova. Afinal, o que disse no Evangelho às multidões que lhe pediam para não se afastar? Eu devo anunciar a palavra também a outras cidades, porque para isso é que fui enviado (Lc 4,43). Mas, se te parece que se afastou de ti, sai e procura-o novamente.
Quem deve te ensinar como reter o Cristo, senão a santa Igreja? Ou melhor, já ensinou, se compreenderes o que lês: Mal eu passei pelos guardas, diz, encontrei aquele que meu coração ama; retive-o e não o deixarei partir (Ct 3,4).  Com que laços se retém o Cristo? Não é com laços de injustiça nem com nós de corda, mas com laços da caridade, com as rédeas do espírito e pelo afeto da alma.
Se queres também reter o Cristo, tenta fazê-lo e não tenhas medo dos sofrimentos. Pois, não raro, é no meio dos suplícios do corpo, nas mãos dos perseguidores, que o encontramos mais facilmente.
Mal eu passei pelos guardas, diz. De fato, num breve espaço de tempo, num instante, ao te livrares das mãos dos algozes, sem sucumbir aos poderosos do mundo, Cristo virá ao teu encontro e não mais permitirá que se prolongue o teu sofrimento.
Aquela que assim busca a Cristo e o encontra pode dizer: Retive-o e não o deixarei partir, até que tenha introduzido na casa de minha mãe, no quarto daquela que me concebeu (Ct 3,4). Qual é a casa de tua mãe e o quarto senão a intimidade mais profunda do teu ser?
Guarda bem esta casa, limpa todos os seus recantos. Assim, quando ela não tiver nenhuma mancha, se erguerá como morada espiritual, fundada sobre a pedra angular, para ser um sacerdócio santo, e o Espírito Santo nela habitará.
Aquela que assim busca a Cristo, que assim lhe suplica, não será por ele abandonada; ao contrário, será visitada por ele com freqüência, pois está conosco até o fim do mundo.

Sexta-feira da 2ª Semana do Advento


Do Tratado contra as heresias, de Santo Irineu, bispo 
(Lib. 5,19,1; 20,2; 21,1: SCh 153, 248-250,260-264) 
(Séc. II) 
Eva e Maria 

Quando o Senhor veio de modo visível ao que era seu, levado pela própria criação que ele sustenta, tomou sobre si, por sua obediência, na árvore da cruz, a desobediência cometida por meio da árvore do paraíso. A sedução de que foi vítima, miseravelmente, a virgem Eva, destinada ao primeiro homem, foi desfeita pela boa-nova da verdade, maravilhosamente anunciada pelo anjo à Virgem Maria, já desposada com um homem.
Assim como Eva foi seduzida pela conversa de um anjo e afastou-se de Deus, desobedecendo à sua palavra, Maria recebeu a boa-nova pela anunciação de outro anjo e mereceu trazer Deus em seu seio, obedecendo à sua palavra. Uma deixou-se seduzir de modo a desobedecer a Deus, a outra deixou-se persuadir a obedecer-lhe. Deste modo, a Virgem Maria tornou-se advogada da virgem Eva.
Por conseguinte, recapitulando em si todas as coisas, o Senhor declarou guerra contra o nosso inimigo. Atacou e venceu aquele que no princípio, em Adão, fez de todos nós seus prisioneiros; e esmagou sua cabeça, conforme estas palavras, ditas por Deus à serpente, que se lêem no Gênesis: Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta te ferirá a cabeça enquanto tu tentarás ferir o seu calcanhar (Gn 3,15).
Desde esse momento, pois, foi anunciado que a cabeça da serpente seria esmagada por aquele que, semelhante a Adão, devia nascer de uma virgem. É este o descendente de que fala o Apóstolo na sua Carta aos Gálatas: A lei foi estabelecida até que chegasse o descendente para quem a promessa fora feita (cf. Gl 3,19).
Na mesma Carta, o Apóstolo se exprime ainda com mais clareza, ao dizer: Quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher (Gl 4,4). O inimigo não teria sido vencido com justiça se o homem que o venceu não tivesse nascido de uma mulher, pois desde o princípio ele tinha se oposto ao homem, dominando-o por meio de uma mulher.
É por isso que o próprio Senhor declara ser o Filho do homem, recapitulando em si aquele primeiro homem a partir do qual foi modelada a mulher. E assim como pela derrota de um homem o gênero humano foi precipitado na morte, pela vitória de outro homem subimos novamente para a vida.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

SANTA JOANA FRANCISCA DE CHANTAL, RELIGIOSA



Nasceu em Dijon (França), no ano de 1572. Casou-se com o barão de Chantal, e foi mãe de seis filhos, os quais educou na piedade. Após a morte do marido, levou uma admirável vida de perfeição, sob a direção de S. Francisco de Sales, praticando especialmente a caridade para com os pobres e enfermos. Fundou a Ordem da Visitação, que governou com sabedoria. Morreu em 1641.

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  Segunda leitura 

Das Memórias de Santa Joana Francisca, escritas por uma religiosa, sua secretária 

 (Françoise-Madeleine de Chaugy, Mémoires sur la vie et les vertus de Sainte J.-F. de Chantal, III, 3: 3ª ed., Paris 1853, p. 306-307)  

(Séc.XVII) 


O amor é forte como a morte   
  Certo dia, Santa Joana disse estas fervorosas palavras, logo fielmente recolhidas:
“Filhas diletíssimas, muitos dos nossos santos Padres e colunas da Igreja não sofreram o martírio; sabeis dizer-me por que razão?” Após a resposta de cada uma, disse a santa Madre: “Quanto a mim, creio que isto aconteceu assim, por haver outro martírio que se chama martírio de amor, em que Deus, conservando em vida seus servos e servas a fim de trabalharem para sua glória, os faz ao mesmo tempo mártires e confessores. Sei que, por disposição divina – acrescentou – as filhas da Visitação são chamadas a este martírio com o mesmo ardor que levou a afrontá-lo aquelas servas mais afortunadas.

À pergunta de uma irmã sobre o modo como poderá se realizar este martírio, respondeu: “Abri-vos inteiramente à vontade de Deus e tereis a prova. O amor divino mergulha sua espada até o mais íntimo e secreto de nossas almas, e separa-nos de nós mesmas. Conheci uma alma a quem o amor separou de tudo quanto lhe agradava, como se o golpe dado pela espada de um tirano lhe tivesse separado o espírito do corpo”.
Percebemos que falara de si mesma. Tendo outra irmã indagado quanto tempo duraria esse martírio, explicou: “Desde o momento em que nos entregamos a Deus sem reservas, até o fim da vida. No entanto, isto só diz respeito às pessoas magnânimas, que, renunciando completamente a si mesmas, são fiéis ao amor; os fracos e inconstantes no amor, nosso Senhor não os leva pelos caminhos do martírio, mas deixa-os viver a passos lentos, para que não se afastem dele; pois nunca força a livre vontade”.
Quando, por fim, lhe foi perguntado se este martírio de amor poderia ser igualado ao martírio do corpo, respondeu: “Não nos preocupemos com a questão da igualdade, muito embora eu julgue que um não ceda ao outro, porque o amor é forte como a morte (Ct 8,6). E ainda porque os mártires de amor sofrem dores mil vezes mais agudas conservando a vida para cumprir a vontade de Deus, do que se tivessem de dar mil vidas para testemunhar a sua fé, o seu amor e a sua fidelidade”.

Quinta-feira da 2ª Semana do Advento


Dos Sermões de São Pedro Crisólogo, bispo 
(Sermo 147: PL, 52, 594-595) 
(Séc. V) 
O amor deseja ardentemente ver a Deus 

Vendo o mundo oprimido pelo temor, Deus procura continuamente chamá-lo com amor, convidá-lo com a sua graça, segurá-lo com a caridade, abraçá-lo com afeto.
Por isso, purifica com o castigo do dilúvio a terra que se tinha inveterado no mal; chama Noé para gerar um mundo novo; encoraja-o com palavras afetuosas, concede-lhe sua confiante amizade, o instrui com bondade acerca do presente e anima-o com sua graça a respeito do futuro. E já não se limita a dar-lhe ordens mas, tomando parte no seu trabalho, encerra na arca toda aquela descendência que havia de perdurar por todos os tempos, para que esta aliança de amor acabasse com o temor da servidão e se conservasse na comunhão de amor o que fora salvo com a comunhão de esforços.
Por esse motivo chama Abraão dentre os pagãos, engrandece seu nome, torna-o pai dos crentes, acompanha-o em sua viagem, protege-o entre os estrangeiros, cumula-o de bens, exalta-o com vitórias, dá-lhe a garantia de suas promessas, livra-o das injúrias, torna-se seu hóspede, maravilha-o com o nascimento de um filho que ele já não podia esperar. Tudo isso a fim de que, cumulado de tantos benefícios, atraído pela grande doçura da caridade divina, aprendesse a amar a Deus e não mais temê-lo, a honrá-lo com amor e não com medo.
Por isso também, consola em sonhos a Jacó quando fugia, desafia-o para um combate em seu regresso e na luta aperta-o nos braços, para que não temesse, porém, amasse o instigador do combate.
Por isso ainda, chama Moisés na própria língua e fala-lhe com afeto paterno, convidando-o a ser o libertador de seu povo.
Em todos esses fatos que relembramos, de tal modo a chama da caridade divina inflamou o coração dos homens e o inebriamento do amor de Deus penetrou os seus sentidos que, cheios de afeto, começaram a desejar ver a Deus com os olhos do corpo.
Deus, que o mundo não pode conter, como o olhar limitado do homem o abrangeria? Mas o que deve ser, o que é possível, não é a regra do amor. O amor ignora as leis, não tem regra, desconhece medida. O amor não desiste perante o impossível, não desanima diante das dificuldades.
O amor, se não alcança o que deseja, chega a matar o que ama; vai para onde é atraído, e não para onde deveria ir. O amor gera o desejo, cresce com ardor e pretende o impossível. E que mais?
O amor não pode deixar de ver o que ama. Por isso todos os santos consideravam pouca coisa toda recompensa, enquanto não vissem a Deus.
Por isso mesmo, o amor que deseja ver a Deus, vê-se impelido, para além de todo raciocínio, pelo fervor da piedade.
Por isso Moisés se atreve a dizer: Se encontrei graça na vossa presença, mostrai-me o vosso rosto (Ex 33,13.18). Por isso, diz também o salmista: Não me escondais a vossa face (Sl 26,9). Por isso, enfim, até os próprios pagãos, no meio de seus erros, modelaram ídolos, para poderem ver com seus próprios olhos o objeto de seu culto.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

SÃO DÂMASO I, PAPA


Nasceu na Espanha cerca do ano 305. Fez parte do clero de Roma e foi ordenado bispo da Igreja Romana no ano de 366, em tempos muito difíceis. Convocou vários sínodos contra os cismáticos e hereges, e foi grande promotor do culto dos Mártires, cujos sepulcros ornou com seus versos. Morreu em 384. 
 
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Do Tratado contra Fausto, de Santo Agostinho, bispo 

(Lib. 20,21: CSEL 25, 562-563) 

(Séc. V) 

Celebramos os mártires com um culto de afeição e de fraternidade 
 
O povo cristão celebra com religiosa solenidade a memória dos mártires para se animar a imitá-los, participar de seus méritos e ser ajudado com a sua intercessão; mas não erguemos altares a nenhum mártir, e sim em memória dos mártires.

Com efeito, qual é o bispo que subindo ao altar, nos lugares onde são sepultados os corpos dos santos mártires, terá dito alguma vez: Oferecemos a ti, Pedro ou Paulo ou Cipriano? Mas o que se oferece, é oferecido a Deus que coroou os mártires, junto às sepulturas daqueles que coroou; para que o próprio lugar desperte maior afeto e estimule a caridade para com aqueles a quem podemos imitar e sobretudo em relação àquele cujo auxílio nos torna possível tal imitação.
Honramos, portanto, os mártires com o mesmo culto de amor e de fraternidade com que veneramos nesta vida os santos homens de Deus, cujos corações sabemos estarem preparados para igual martírio pela verdade do Evangelho. Mas àqueles que já superaram o combate e vivem triunfalmente numa vida mais feliz, prestamos este culto de louvor com maior devoção e confiança do que àqueles que ainda lutam nesta vida.
Neste culto, que denominamos latria, modalidade de serviço devido à divindade mesma, adoramos e ensinamos a adorar o único Deus.
Como a oblação do sacrifício faz parte deste culto de latria – donde chamar-se idolatria o sacrifício oferecido aos ídolos – nada oferecemos nem mandamos oferecer a um mártir, a uma pessoa santa ou a um anjo; e quem cair em tal erro é advertido pela sã doutrina para que se corrija ou tenha cuidado.
Os próprios santos, como homens, não querem esta manifestação que bem sabem convir exclusivamente a Deus. Assim procederam Paulo e Barnabé quando os licaônios, impressionados com os milagres por eles operados, quiseram oferecer-lhes sacrifícios como a deuses; então, rasgando as vestes, eles afirmavam e convenciam-nos que não eram deuses, impedindo-os de realizarem tal intento.

Contudo uma coisa é o que ensinamos; outra, o que suportamos. Uma coisa é o que mandamos fazer, e outra o que queremos corrigir e nos vemos forçados a tolerar, enquanto não conseguimos corrigi-lo. 

Quarta-feira da 2ª Semana do Advento


Dos comentários sobre os Salmos, de Santo Agostinho, bispo 
(In Ps. 109,1-3: CCL 40,1601-1603) 
(Séc. V) 

Deus cumpre as suas promessas por meio de seu Filho 

Deus estabeleceu não só um tempo para suas promessas, como também um tempo para a realização do que prometera. O tempo das promessas vai dos profetas a João Batista. A partir dele começa o tempo de cumprir-se o prometido.

Deus, que se fez nosso devedor, é fiel, nada recebendo de nós mas nos prometendo tão grandes bens. Pareceu-lhe pouco a simples promessa e, por isso, quis ainda comprometer-se por escrito, como que firmando conosco um contrato. Desse modo, quando começasse a cumprir as coisas prometidas, veríamos em tal escritura a ordem com que seriam realizadas. O tempo das profecias era o do anúncio das promessas, como já dissemos várias vezes.

Prometeu-nos a salvação eterna, a vida bem-aventurada e sem fim em companhia dos anjos, a herança imperecível, a glória eterna, a doçura da visão de seu rosto, a sua morada santa nos céus e, pela ressurreição dos mortos, a exclusão total da morte. É esta, de certo modo, a sua promessa final, o objeto de toda nossa aspiração. Quando a tivermos alcançado, nada mais buscaremos, nada poderemos exigir. Não deixou também de revelar o caminho que nos havia de conduzir a esses últimos fins, mas o prometeu e anunciou.

Deus prometeu aos homens a divindade, aos mortais a imortalidade, aos pecadores a justificação, aos humilhados a glória.

Contudo, meus irmãos, pareceria inacreditável aos homens que Deus prometesse tirá-los da sua condição mortal de corrupção, vergonha, fraqueza, pó e cinza, para torná-los semelhantes aos anjos. Por isso, não só firmou com eles um contrato que os levasse a crer, mas constituiu ainda como mediador e garantia, não um príncipe qualquer ou algum anjo ou arcanjo, mas seu Filho único. Desse modo, mostrou-nos e ofereceu-nos, por meio de seu próprio Filho, o caminho que nos levaria ao fim prometido.

Não bastou, porém, a Deus fazer seu filho indicar o caminho; quis que ele mesmo fosse o caminho, a fim de te deixares conduzir por ele, caminhando sobre ele próprio.

Para isso, o Filho único de Deus deveria vir ao encontro dos homens e assumir a natureza humana. Tornando-se homem, deveria morrer, ressuscitar, subir aos céus, sentar-se à direita do Pai e realizar entre os povos o que prometera. E, depois da realização de suas promessas entre os povos, cumprirá também a de voltar para pedir contas de seus dons, separando os que merecerão a sua ira ou sua misericórdia, tratando os ímpios como ameaçara e os justos como prometera.

Tudo isso devia ser profetizado, anunciado e recomendado, para que, ao suceder, não provocasse medo com uma vinda inesperada, mas ao contrário, sendo objeto da nossa fé, o fosse também por uma ardente esperança.

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Terça-feira da 2ª Semana do Advento


Da Constituição dogmática Lumen gentium sobre a Igreja, do Concílio Vaticano II 
(N. 48) 
(Séc. XX) 
êndole escatológica da Igreja peregrina 

A Igreja, à qual somos todos chamados no Cristo Jesus e na qual, pela graça de Deus, alcançamos a santidade, só será consumada na glória celeste, quando chegar o tempo da restauração de todas as coisas; e quando, com o gênero humano, também o mundo inteiro, que está intimamente unido ao homem e por ele atinge o seu fim, for perfeitamente recapitulado no Cristo.
Cristo, ao ser elevado da terra, atraiu a si todos os homens; ressuscitado dos mortos, enviou aos discípulos seu Espírito vivificante e por meio dele constituiu seu Corpo, que é a Igreja, como sacramento universal de salvação. Sentado à direita do Pai, age continuamente no mundo para conduzir os homens à Igreja e por ela uni-los mais estreitamente a si e, alimentando-os com seu Corpo e seu Sangue, torná-los participantes de sua vida gloriosa.
A restauração que nos foi prometida e que esperamos já começou, pois, em Cristo, prossegue na missão do Espírito Santo e por meio dele continua na Igreja que, pela fé, também nos ensina o sentido de nossa vida temporal, enquanto, com a esperança dos bens futuros, vamos realizando a obra que o Pai nos confiou no mundo e trabalhamos para a nossa salvação.
Já chegou para nós o fim dos tempos; a renovação do mundo foi irrevogavelmente decidida e de certo modo é realmente antecipada neste mundo. De fato, a Igreja possui, já na terra, uma verdadeira santidade, embora imperfeita.
Contudo, até que venham os novos céus e a nova terra onde habita a justiça, a Igreja peregrina, em seus sacramentos e instituições que pertencem a este tempo, traz consigo a figura deste mundo que passa, e vive entre as criaturas que até agora gemem e sofrem dores de parto, aguardando a manifestação dos filhos de Deus.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Segunda-feira da 2ª Semana do Advento


Do Tratado “A subida do Monte Carmelo”, de São João da Cruz, presbítero
(Lib. 2, cap. 22) 
(Séc. XVI) 

Deus nos falou pelo Cristo 


O motivo principal por que na antiga Lei eram lícitas as perguntas feitas a Deus, e convinha aos profetas e sacerdotes desejarem visões e revelações divinas, era não estar ainda bem fundada a fé nem estabelecida a Lei evangélica. Era assim necessário que se interrogasse a Deus e ele respondesse, ora por palavras, ora por visões e revelações, ora por meio de figuras e símbolos ou finalmente por muitas outras maneiras de expressão. Porque tudo o que respondia, falava e revelava, eram mistérios da nossa fé ou verdades que a ela se referiam ou a ela conduziam.
Agora, já estando firmada a fé em Cristo e promulgada a Lei evangélica nesta era de graça, não há mais razão para perguntar a Deus, daquele modo, nem para que ele responda como antigamente. Ao dar-nos, como nos deu, o seu Filho, que é a sua única Palavra (e não há outra), disse-nos tudo de uma vez nessa Palavra e nada mais tem a dizer.
É este o sentido do texto em que São Paulo busca persuadir os hebreus a se afastarem daqueles primitivos modos de tratar com Deus, previstos na lei de Moisés, e a fixarem os olhos unicamente em Cristo, dizendo: Muitas vezes e de muitos modos falou Deus outrora aos nossos pais, pelos profetas; nestes dias, que são os últimos, ele nos falou por meio de seu Filho (Hb 1,1-2). Por estas palavras o Apóstolo dá a entender que Deus emudeceu, por assim dizer, e nada mais tem a falar, pois o que antes dizia em parte aos profetas, agora nos revelou no todo, dando-nos o Tudo, que é o seu Filho.
Se agora, portanto, alguém quisesse interrogar a Deus, ou pedir-lhe alguma visão ou revelação, faria injúria a Deus não pondo os olhos totalmente em Cristo, sem querer outra coisa ou novidade alguma. Deus poderia responder-lhe deste modo: Este é o meu Filho amado, no qual eu pus todo o meu agrado. Escutai-o! (Mt 17,5). Já te disse todas as coisas em minha Palavra. Põe os olhos unicamente nele, pois nele tudo disse e revelei, e encontrarás ainda mais do que pedes e desejas.
Desde o dia em que, no Tabor, desci com meu Espírito sobre ele, dizendo: Este é o meu Filho amado, no qual eu pus todo o meu agrado. Escutai-o!, aboli todas as antigas maneiras de ensinamento e resposta. Se falava antes, era para prometer o Cristo; se me interrogavam, eram perguntas relacionadas com o pedido e a esperança da vinda do Cristo, no qual haviam de encontrar todo o bem – como agora o demonstra toda a doutrina dos evangelhos e dos apóstolos.

domingo, 8 de dezembro de 2019

IMACULADA CONCEIÇÃO DE NOSSA SENHORA

Solenidade 

Na Inglaterra e na Normandia já se celebrava no século XI uma festa da conceição de Maria; comemorava-se o acontecimento em si, apoiando-se sobretudo em sua condição miraculosa (esterilidade de Ana etc). Além desse aspecto, Santo Anselmo realçou a verdadeira grandeza do mistério que se realiza na concepção de Maria: sua preservação do pecado. Em 1439, o Concílio de Basiléia considerou este mistério como uma verdade de fé, e Pio IX proclamou-o dogma em 1854. 

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Das Meditações de Santo Anselmo, bispo 

(Oratio 52: PL 158, 955-956) 

(Séc. XII) 

Ó Virgem, pela tua bênção é abençoada a criação inteira! 
  O céu e as estrelas, a terra e os rios, o dia e a noite, e tudo quanto obedece ou serve aos homens, congratulam-se, ó Senhora, porque a beleza perdida foi por ti de certo modo ressuscitada e dotada de uma graça nova e inefável. Todas as coisas pareciam mortas, ao perderem sua dignidade original que é de estar em poder e a serviço dos que louvam a Deus. Para isto é que foram criadas. Estavam oprimidas e desfiguradas pelo mau uso que delas faziam os idólatras, para os quais não haviam sido criadas. Agora, porém, como que ressuscitadas, alegram-se pois são governadas pelo poder e embelezadas pelo uso dos que louvam a Deus.
Perante esta nova e inestimável graça, todas as coisas exultam de alegria ao sentirem que Deus, seu Criador, não apenas as governa invisivelmente lá do alto, mas também está visivelmente nelas, santificando-as com o uso que delas faz. Tão grandes bens procedem do bendito fruto do sagrado seio da Virgem Maria.
Pela plenitude da tua graça, aqueles que estavam na mansão dos mortos alegram-se, agora libertos; e os que estavam acima do céu rejubilam-se renovados. Com efeito, pelo Filho glorioso de tua gloriosa virgindade todos os  justos que morreram antes da sua morte vivificante, exultam pelo fim de seu cativeiro, e os anjos se congratulam pela restauração de sua cidade quase em ruínas.
Ó mulher cheia e mais que cheia de graça, o transbordamento de tua plenitude faz renascer toda criatura! Ó Virgem bendita e mais que bendita, pela tua bênção é abençoada toda a natureza, não só as coisas criadas pelo Criador, mas também o Criador pela criatura!
Deus deu a Maria o seu próprio Filho, único gerado de seu coração, igual a si, a quem amava como a si mesmo. No seio de Maria, formou seu Filho, não outro qualquer, mas o mesmo, para que, por natureza, fosse realmente um só e o mesmo Filho de Deus e de Maria! Toda a criação é obra de Deus, e Deus nasceu de Maria. Deus criou todas as coisas, e Maria deu à luz Deus! Deus que tudo fez, formou-se a si próprio no seio de Maria. E deste modo refez tudo o que tinha feito. Ele que pode fazer tudo do nada, não quis refazer sem Maria o que fora profanado.
Por conseguinte, Deus é o Pai das coisas criadas, e Maria a mãe das coisas recriadas. Deus é o Pai da criação universal, e Maria a mãe da redenção universal. Pois Deus gerou aquele por quem tudo foi feito, e Maria deu à luz aquele por quem tudo foi salvo. Deus gerou aquele sem o qual nada absolutamente existe, e Maria deu à luz aquele sem o qual nada absolutamente é bom.
Verdadeiramente o Senhor é contigo, pois quis que toda a natureza reconheça que deve a ti, juntamente com ele, tão grande benefício.

Domingo da 2ª Semana do Advento


Dos Comentários sobre o Profeta Isaías, de Eusébio de Cesaréia, bispo

(Cap. 40: PG 24,366-367) 

(Séc. IV) 

Uma voz clama no deserto 


Uma voz clama no deserto:Preparai o caminho do Senhor, aplainai a estrada de nosso Deus” (Is 40,3). O profeta afirma claramente que não será em Jerusalém, mas no deserto que se realizará esta profecia, isto é, a manifestação da glória do Senhor e o anúncio da salvação de Deus para toda a humanidade.
Na verdade, tudo isto se realizou literalmente na história, quando João Batista anunciou no deserto do Jordão a vinda salvífica de Deus e ali se revelou a salvação de Deus. De fato, Cristo manifestou-se a todos em sua glória quando, depois de seu batismo, os céus se abriram e o Espírito Santo, descendo em forma de pomba, pousou sobre ele; e a voz do Pai se fez ouvir, dando testemunho do Filho: Este é o meu Filho amado, escutai-o (Mt 17,5).
Estas coisas foram ditas porque Deus deveria vir ao deserto, desde sempre fechado e inacessível. Com efeito, todas as nações pagãs estavam privadas do conhecimento de Deus, e os homens justos e os profetas de Deus nunca haviam penetrado nelas.
Por este motivo, a voz ordena que se prepare um caminho para a Palavra de Deus e se aplainem os terrenos escarpados e ásperos, a fim de que o nosso Deus possa entrar quando vier. Preparai o caminho do Senhor (Mc 1,3): é esta a pregação evangélica que traz um novo consolo e deseja ardentemente que o anúncio da salvação de Deus chegue a todos os homens.
Sobe a um alto monte, tu, que trazes a boa-nova a Sião. Levanta com força a voz, tu, que trazes a boa-nova a Jerusalém (Is 40,9). Depois que se mencionou a voz que clama no deserto, convêm perfeitamente estas palavras, que se referem aos evangelistas e anunciam a vinda de Deus entre os homens. De fato, a alusão aos evangelistas devia logicamente seguir a profecia sobre João Batista.
Que Sião é esta, senão a que antes se chamava Jerusalém? Era realmente um monte, como declara esta palavra da Escritura: O monte Sião que escolhestes para morada (Sl 73,2). E o Apóstolo: Vós vos aproximastes do monte de Sião (Hb 12,22). Não será uma alusão ao grupo dos apóstolos, escolhido entre o antigo povo da circuncisão?
Tal é, pois, Sião ou Jerusalém, que recebeu a salvação de Deus, e que foi edificada sobre o monte de Deus, isto é, sobre o Verbo, seu Filho único. A ela, que subiu ao alto monte, é que Deus ordena anunciar a palavra da salvação. Mas quem anuncia a boa-nova, senão o coro dos evangelistas? E o que significa anunciar a boa-nova? É proclamar a todos os homens, e em primeiro lugar às cidades de Judá, a vinda de Cristo à terra.